segunda-feira, 15 de setembro de 2008

A consciência de Judas

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por Christina Fontenelle

em 17 de abril de 2006

Resumo: Transformar Judas em personagem fundamental da missão de Jesus é de uma incapacidade de compreensão fantástica.

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Não vejo ninguém tentando dizer que umbandistas não devam acreditar nos seus rituais. Tampouco vejo os espíritas sendo perseguidos para provar que exista reencarnação – ao contrário, em muitos filmes e novelas, o fenômeno é posto acima de qualquer suspeita, mesmo que não haja nenhuma prova contundente de sua existência. Budistas também não são forçados a dar maiores explicações sobre a fé que possuem nas sucessivas reencarnações de Buda. Assim funciona em relação a todas as crenças religiosas ou ritualistas do planeta. Entretanto, para com os Católicos (e com os cristãos de um modo geral), o tratamento dispensado pelas diferentes culturas e pela mídia é bem diferente: eles são permanentemente chamados a ter que provar como lógico e verdadeiro tudo aquilo em que dizem crer.

A Igreja Católica, igualmente, vive sob intensa pressão para mudar de opinião em relação a questões de comportamento e em relação às regras que impõe para admitir fiéis, padres e freiras. Há muitos anos, Lutero, insatisfeito com a Igreja, fundou o Protestantismo. Muitos judeus não se converteram ao Cristianismo por não acreditarem que Jesus seja o Messias que está nas profecias bíblicas. A questão é simples: ninguém obriga ninguém a ser católico ou cristão, de maneira que quem decidir sê-lo não tem que ficar dando satisfações sobre sua escolha e muito menos tendo que provar que suas crenças sejam verdadeiras.

É bem verdade que os 2,1 bilhões de cristãos que existem no mundo sejam, entre outras coisas, uma pedra no sapato de comunistas e daqueles que sonham em ver a humanidade sob uma espécie de seita universal (unânime, racional e relativista) – que faça da "religião" um instrumento de adaptação de Deus aos desejos e necessidades dos homens (e não o contrário). Talvez (vamos ser benevolentes) por isso exista esta insistência (vamos ser benevolentes outra vez) em questionar sobre aquilo em que crêem os cristãos.

A última investida contra aquilo que faz parte da fé cristã é a revelação de um manuscrito do século IV, que transcreve um outro do século I, escrito por membros da seita gnóstica cainita, um movimento religioso que misturava misticismo e filosofia. É o "evangelho" de Judas, cuja existência já teria sido admitida por S. Irineu, no texto Contra as Heresias, escrito no ano de 180 d.C. Na visão dos cainitas, a traição de Judas Iscariotes faria parte do plano de Deus, descrito em profecias, já que sem ela não haveria salvação para os homens - portanto, ele teria seguido um desígnio divino e, se não podia fugir de seu destino, não teria traído Jesus, mas sim ajudado o Mestre a cumprir Sua missão. Puro exercício de racionalização.

Esse tipo de pensamento passa pela cabeça de qualquer criança de dez anos, um pouco mais interessada e aplicada nas aulas de catecismo. Faz parte do raciocínio lógico do ser humano. Entretanto, todos nós aprendemos, com o tempo que, quando se trata de fé e religião, nem sempre conseguimos encontrar explicações lógicas para fatos e crenças – são os dogmas. Eis o mistério da fé!

Entretanto, no caso específico da traição de Judas, bastam alguns instantes de reflexão para que coloquemos as coisas em seus devidos lugares. O que vem a ser uma profecia? Profecia é a revelação de algo que irá acontecer. Reparem: as profecias não determinam as coisas que vão acontecer, elas simplesmente fazem uma descrição. As profecias de Zacarias (11:12 e 11:13) e as descritas nos Salmos (41:9) falam sim, das trinta moedas e da traição do amigo de Jesus, mas descrevendo o que iria acontecer e não pretendendo determinar o que deveria acontecer. Há uma grande diferença. Afinal, se não vier a acontecer o que diz uma profecia, ela deixa de sê-lo, passando a ser uma especulação, uma probabilidade. Portanto, não cabe atribuir culpa ou responsabilidades sobre profecias.

O fato de Judas ter traído Jesus veio a comprovar que o que estava escrito a esse respeito nas Sagradas Escrituras era realmente profecia. A traição foi, sim, opção daquele apóstolo, por achar que Jesus não era o Messias que libertaria seu povo do domínio romano, para que surgisse o esperado Reino de Israel. Judas ficou decepcionado com Jesus e jamais conseguiu compreender a missão do Mestre Salvador. O Mal venceu em Judas, como ainda o faz em muitos dos homens que habitam hoje entre nós. O Mal existe e pretende vencer Deus, mostrando que a criatura não resiste ao livre arbítrio. Jesus deu todas as chances para que Judas se redimisse de suas intenções (todas elas bem conhecidas por Jesus), mas não o impediu nem o subjugou. Judas traiu Jesus porque quis e com plena consciência do que estava fazendo. Se houve, depois de trair o Mestre, algum arrependimento por parte do 12° apóstolo, não saberemos jamais – de certo que se tiver havido, com sinceridade, terá sido perdoado.

Quando Deus se fez Homem, enviando ao mundo Aquele que chamou de Filho, o fez para mostrar ao Mal que poderia vencê-lo, mesmo sendo criatura, sujeito às tentações e aos limites do corpo. Ao mesmo tempo ensinou, pessoalmente, aos homens os caminhos que a Ele levariam. O Criador se fez criatura e pôde perceber o mundo através da própria criação. Jamais cogitou tirar dos homens o livre arbítrio e nem mesmo do Filho o tirou. Jesus foi tentado de todas as maneiras para que fizesse da Terra seu Reino, inclusive para escapar da crucificação. Ele mesmo orou a Deus: "Pai, tudo te é possível: afasta de mim esse cálice, mas não seja o que Eu quero, senão o que Tu queres". Ainda, quando sabia estar próxima a hora de ser entregue, o Cristo disse aos discípulos: "O espírito está pronto, mas a carne é fraca". Entretanto, o Mestre manteve-se fiel ao Pai, enfrentou o calvário e venceu o Mal.

Transformar Judas em personagem fundamental da missão de Jesus é de uma incapacidade de compreensão fantástica e, por parte dos católicos, de uma ingratidão sem medidas. É bem verdade que Judas acabou deixando um belo exemplo, para todos os cristãos, de como o egoísmo e a prepotência podem cegar um homem e desviá-lo dos caminhos da Verdade. Acabou tornando-se exemplo do infinito respeito de Deus pelo livre arbítrio com o qual dotou a criatura. Deixou bem claro: os homens são criaturas livres para fazer suas escolhas, mesmo que isso signifique rejeitar o Criador. E, como a casa de Deus tem muitas moradas, até mesmo aqueles que jamais tenham sido iniciados são dotados dos instintos que os fazem capazes de escolher entre a Luz e as trevas.

Comparar a atitude de Judas com a do apóstolo Pedro que negou conhecer Jesus, depois de Sua prisão, por três vezes, como Ele mesmo o havia dito que faria, chamando as duas de traição, é aproveitar-se dos múltiplos significados do termo, que todos sabem muito bem só pode ser entendido dentro de contextos muito bem especificados. No caso do primeiro, a traição significa entregar, agir pelas costas ou agir com intenção de prejudicar. Já em se tratando de Pedro, se traiu alguém foi a si mesmo, em relação ao que acreditava. Suas três negativas não prejudicaram o Mestre, mas fizeram com que viesse a aprender muito sobre soberba, covardia, medo, fraqueza e arrependimento.

A revelação para o mundo do "evangelho" agnóstico de Judas será muito útil sim, para reforçar mais uma vez a idéia de que os homens são e devem ser livres para pensar o que quiserem e para fazer as escolhas que quiserem, desde que venham a assumir as conseqüências de cada uma delas.

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